zeitgeist e zen num zábado de manhã

zeitgeist_eyesábado de manhã, de bobeira bebendo meu café enquanto escarafuncho a internet à procura das legendas para o terceiro episódio da série do lobo solitário (a última que falta), sem saber ainda se fico em casa curtindo alguns dos dez livros que aguardam serem lidos ou se vou um pouco mais tarde encontrar os camaradas do aikidô para encher a cara num quiosque atrás do aeroporto santos dumont, topo com o filme zeitgeist (ô frase comprida!).

acho que já ouvi alguma referência a respeito, mas, intrigado, resolvi assistir.

o filme abre com uma fala de um monge budista, um rimpoche da vida (esse termo semprer me faz lembrar “ovo pochê”), sobre o significado de viver o “aqui e agora”, desfrutar as experiências disponíveis no momento exato em que acontecem. e de como essa vivência desperta uma espécie de inteligência gerada pela interação constante e ininterrupta com o mundo, e pelas escolhas que dela advêm. cada escolha é riquíssima em si, e todas elas são absolutamente amorais.

sim, amorais porque nenhuma delas é boa ou má por si mesma – esses são rótulos que aplicamos posteriormente.

em vez de fruirmos da riqueza das possibilidades do momento, sentimo-nos ameaçados pelo medo de ter que escolher entre “o certo” ou “o errado”. e aí – como diz o ovo pochê – a “solução” que encontramos é resgatar o passado, ou convidar o futuro. ambas as opções, diga-se de passagem, inúteis e angustiantes, porque não estão vivas.

como não damos a devida atenção às escolhas que fazemos, não sentimos que elas nos conduzem a lugares. por isso, a impressão que de vez em quando nos assalta ao longo da vida é a de que apenas esperamos a morte.

ao não acreditar no poder do “agora” – que nada tem de místico! -, fatalmente acabamos nos apoiando em coisas como religião, sociedade, política – sendo a guerra a consequência mais nefasta comum às três.

isso tudo são apenas quatro minutos de filme, que tem pouco mais de duas horas!
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zenparei o filme agora para escrever isso (que quando alguém ler já vai ser passado, e portanto, morto) porque esse trecho do filme me lembrou muito o conceito de “Qualidade” desenvolvido pelo robert pirsig num dos meus livros de cabeceira, zen e a arte de manutenção de motocicletas.

“Qualidade”, para pirsig, é gerada a partir da experiência direta com o mundo. a Qualidade vem antes do juízo de valor. é um conceito meio ingrato de se explicar rapidamente, mas tem um exemplo no livro que considero bem ilustrativo.

ao sentar-se sobre uma chapa quente de hambúrguer, instantaneamente a pessoa vai sentir o desconforto da queimadura e saltar dali. essa é uma experiência de baixa qualidade, sem dúvida.

mas a conceituação sobre as causas do desconforto virão depois. a qualidade da experiência foi baixa por causa do calor, da queimadura na pele etc. mas no momento em que saltamos da chapa quente como um foguete, não há primeiro o pensamento “acho que tem algo queimando aqui… ei, é a minha bunda!”, para então sairmos dali. a sensação de baixa qualidade é imediata.

a partir daí, pirsig afirma que é a Qualidade (as experiências não-racionais do “agora”) que “criam” o mundo como entendemos e determinam nossa relação com ele.

chutando alto, arrisco dizer que a Qualidade de pirsig é o a posteriori da filosofia – o conhecimento que parte dos efeitos para se chegar às causas.

ao tecer esses conceitos (e no livro você vê direitinho o caminho que ele percorreu), pirsig bate de frente com o platonismo. estudando os gregos, ele identifica uma disputa de poder que ocorreu entre platão e os sofistas. estes, por sua vez, possuíam um entendimento do mundo bem próximo do que o autor chamou, séculos depois, de Qualidade.

não me lembro bem como, mas o fato é que o platão levou a melhor na briga, e é por isso que hoje sofismo virou sinônimo de mentira, e estamos atolados até o pescoço em bobagens como o amor platônico.
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essas coisaradas todas também me remetem (obviamente!) ao kurt kurt-vonnegutvonnegut, para quem o mundo é estúpido, sem sentido e muitas vezes, cruel. de maneira que ele acredita que o importante é aproveitar todos os pequenos momentos de felicidade, porque é por eles que ainda vale a apena caminhar sobre a superfície desse planeta cada vez menos azul.

em pelo menos dois livros, vonnegut cita a frase dita por um tio numa tarde de primavera, ao tomar uma limonada contemplando o jardim de sua casa, sentado sob a sombra da varanda. “se isso não é bom, então o que mais será?”

esse é, para mim, o ensinamento zen final. e é por ele que eu busco viver tentando não me entristecer pelo passado, não me angustiar com o futuro, e, principalmente, não me aborrecer com o presente.

a tarefa é hercúlea, e não raras vezes, ingrata. ainda me irrito muito quando me sinto pressionado a ceder nos poucos milímetros dessa sanidade duramente conquistada. mas sublimar essas chateações também fazem parte do bom combate, o único que merece ser lutado.

ser fluido como a água é o que importa.
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tudo isso está sendo escrito num sábado de manhã (já não tanto de manhã assim), ao custo de duas jarras inteiras de café com aroma de trufas. o dia está quase frio, o tempo está nublado mas não chove. estou feliz por estar terminando, e pela remota possibilidade de talvez me fazer entender.

se isso não é bom, então que mais será?

1 comentário

Arquivado em ego, literatura

Uma resposta para “zeitgeist e zen num zábado de manhã

  1. Marcos

    Mestge, ótimo texto. Escrever num blog é limonada na varanda, antes de tudo. E se não for, melhor desistir da ideia. Bom lembrar dessa simplicidade de vida, meu amigo.

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